Primavera, Páscoa, Festa Junina e Bruxaria | Conto #2
Eu juro que esse título com palavras aleatórias faz muito mais sentido do que você imagina!
Estava aqui entre caixas e caixas de mudança pensando sobre os próximos assuntos da nossa newsletter quando me dei conta a Páscoa já estava chegando e poderia muito bem aproveitar pra contar como essa data é celebrada aqui na Suécia, um país laico.
Na teoria esse texto seria publicado antes da Páscoa. Mas claro que na prática, pra uma pessoa que trabalha em ‘horeca’ (hotelaria-restaurante-catering), feriados não apenas são inexistentes, como também é um período onde você trabalha dez vezes mais. Mas independente da data em si, esse texto tá super interessante e vai valer a leitura atrasada, prometo!
Antes de mais nada… o que é um país laico?
Segundo o dicionário Oxford:
“Que ou aquele que não pertence ao clero nem a uma ordem religiosa; leigo”.
“Que ou aquele que é hostil à influência, ao controle da Igreja e do clero sobre a vida intelectual e moral, sobre as instituições e os serviços públicos”.
Curiosamente - e não à toa - a Suécia é o país com mais ateus no mundo. Esse foi o resultado da pesquisa “Ateísmo: Taxas e Padrões Contemporâneos” do sociólogo norte-americano Phil Zuckerman. A revista Super Interessante publicou um artigo sobre esse assunto e também você pode checar mais infos no Wikipedia.
Então se a Suécia não é um país religioso, a Páscoa não é celebrada?
É celebrada sim. Mas obviamente diferente do que estamos acostumados. O Brasil é um país religioso que segue tradições e feriados do catolicismo (ou vertentes do cristianismo) mesmo sendo, em teoria, um país laico - decretado pela Constituição Republicana em 1890 (mas a gente sabe que na prática não é bem assim, né!).
Já na Suécia, o feriado é celebrado de forma mais leve. Os Suecos viajam para suas “casas de férias” (algo extremamente comum aqui) para passar esse tempo com amigos e família, fazendo algo divertido e claro, comendo. Seja ir para o Norte pra esquiar e curtir temperaturas mais baixas ou para o Sul pra curtir dias mais amenos e com mais verde. O fato é que esse feriado é um momento onde os Suecos aproveitam para viajar ou simplesmente reunir as pessoas em casa mesmo, afinal é dia de folga pra maioria das pessoas.
A semana de Páscoa é, principalmente, um momento para apreciar e aproveitar a mudança de estação, afinal é primavera. Os dias estão mais longos, ensolarados e belos. Em algumas partes do país a neve já derreteu e é possível apreciar a grama verdinha novamente. Senti uma pontinha de inveja pois aqui no Norte temos ainda metros e metros de neve e esses dias atrás estava inclusive nevando (e sabemos que a neve vai ficar por aqui pelo menos até Maio). Sim, acredite. E sim, já não aguento mais passar frio.
Mesmo reclamando, já sinto uma baita mudança se considerarmos que no inverno a noite chegava em torno das 15:00 (escurecendo em torno das 14:00/14:30) e agora temos luz até as 20:00 e só vai ficar cada vez mais claro até que no verão o dia nunca acaba. Como assim? É… o sol na teoria nunca se põe. Ele desce mas fica no horizonte bem baixo, mas ainda lá. Por conta disso temos “luz” por 24hrs por algumas semanas. É como se fosse noite mas não completamente escuro, o céu fica azul escuro mas não preto. É uma coisa bem doida! E quanto mais ao norte você vai, mais intenso e duradouro é esse fenômeno, chamado “Midnight Sun” (sol da meia noite).
Mas voltando ao feriado…
Como os Suecos celebram a Páscoa?
Existem algumas tradições bem interessantes. Algumas são similares ou iguais às da Holanda (onde já morei) e é também um país não-religioso. Já outras são definitivamente bem Escandinavas. Que na minha opinião é um “mundo à parte” da Europa.
Desde 1844, a Páscoa Sueca é celebrada de acordo com o calendário gregoriano. Até a década de 1970 era celebrado como um evento religioso, com lojas, bancos e cinemas fechando na Sexta-feira Santa em reconhecimento à crucificação de Cristo. Nas últimas décadas, foi amplamente secularizado (ou seja, sem nenhuma ligação religiosa), mas sim transformado em uma mistura de tradições cristãs, folclóricas e nórdicas antigas (pagãs).
O resultado é uma celebração única que começa na Quinta-feira Santa (Skärtorsdag) e vai até a Segunda-feira de Páscoa (Annandag Påsk) – com o Sábado Santo marcado como o principal dia (e noite) para as festividades.
As tradições e seus significados
A “árvore” de Páscoa
Na Sexta-Feira Santa (Långfredagen) e Sábado Santo (Påskafton), crianças e adultos se reúnem para pintar ovos e decorar galhos de bétula (uma árvore super comum aqui) com penas coloridas, assim como os ovos que são pintados à mão com cores vibrantes como forma de dar as boas-vindas à nova estação. Além dos ovos de galinha, é costume fazer ou comprar ovos de papel e enchê-los de doces (essa tradição começou em 1800).
É possível encontrar em lojas ou supermercados ovos já pintados, caso você não tenha habilidade ou tempo mas no geral as pessoas aqui gostam muito dessa etapa de colorir os próprios ovos como parte da tradição.
Depois de prontos os ovos são colocados em uma cesta como centro de mesa ou pendurados em árvores e galhos colocados num vaso. É comum encontrar esse tipo de decoração mesmo em casas sem crianças, os adultos também adoram decorar de acordo com as estações do ano e tradições, inclusive aqui no Norte eu vejo muito essas árvores de Páscoa do lado de fora da casa, perto da rua.
Mais do que uma simples decoração, reza a lenda que ela traz alguns simbolismos e significados:
Do cristianismo: em torno de 1600, os Suecos costumavam pegar galhos para se autoflagelar na Sexta-Feira Santa em glorificação ao sofrimento de Jesus. Foi apenas nos anos 1800 e 1900 que os galhos começaram a ser decorados e se tornaram uma decoração simbólica para a Páscoa.
Do paganismo: Os galhos representam uma vassoura e as penas ficam presas na vassoura enquanto varremos os dias “ruins”, simbolizando o fim do inverno. Outra interpretação é que os galhos representam uma vassoura de bruxa e as penas indicam o vôo.
Påskmust - a “Coca-Cola” da Páscoa
Påsk significa Páscoa e must (do inglês ‘must’) significa “suco de fruta não fermentado”. Esse é um refrigerante consumido durante os feriados de Páscoa e Natal (Julmust) - onde o consumo é tão grande que ultrapassa as vendas de Coca-Cola. O conteúdo da bebida de Páscoa e do Natal é o mesmo, independentemente do nome, mas alguns Suecos juram que o sabor é diferente.
O ‘must’ é feito de água gaseificada, açúcar, extrato de lúpulo, extrato de malte, especiarias, corante caramelo, ácido cítrico e conservantes. Os extratos de lúpulo e malte conferem à bebida um sabor parecido com root beer. A receita do xarope do ‘must’ foi criada por Harry Roberts e seu pai Robert Roberts em 1910 como uma alternativa não alcoólica à cerveja e é produzido até hoje em Örebro e vendido para várias empresas que produzem refrigerante.
Comes & Bebes
A refeição tradicional no almoço é o Påskbord (a versão de Páscoa do Smörgåsbord de Natal). A palavra ‘bord’ vem do inglês ‘board’ e significa mesa ou tábua. Seria como a nossa tábua de frios mas com outros ingredientes. No caso dos Suecos ela inclui basicamente muitos alimentos defumados e em conserva (principalmente peixe), além de pratos com ovos e batatas.
O motivo é que antes da industrialização do século 19, os produtos frescos eram escassos após o longo e intenso inverno Sueco. Os únicos alimentos disponíveis eram os que sobreviviam a estação (ou eram de fácil acesso na propriedade, como os ovos provenientes das galinhas que eles criavam) e os alimentos em conserva feitos em casa (como o nome diz, o melhor método de conservar alimentos independente da temperatura, ou seja, sem geladeira). Por isso as refeições de Páscoa eram super modestas e com pouca variedade.
Claro que nos dias atuais a situação é diferente mas ainda assim a tradição - a base - da alimentação Sueca é a mesma e por isso é extremamente comum encontrar esses mesmos ingredientes nas refeições do cotidiano e principalmente em celebrações como Páscoa e Natal.
Alguns exemplos de pratos tradicionais:
Gubbröra: salada de ovo com anchovas - é um clássico da Páscoa e também pode ser vegana se os ovos forem substituídos por cogumelos e batatas, por exemplo.
Sill: o arenque (peixe) em conserva é super popular e vem em uma variedade de opções de conserva e especiarias, como cravo, cebola, mostarda, etc.
Lax: o salmão é sempre presente e você pode encontrar inclusive com diferentes tipos de “preparações”. Como defumado, escalfado/cozido (em inglês ‘poached’), frito ou servido refrigerado em forma curada ('gravlax').
Janssons frestelse: um prato gratinado feito de batatas cortadas em tiras e cobertas com cebola e anchovas em conserva.
Västerbottenpaj: quiche feita com queijo Västerbotten extra maduro, um queijo com sabor bem intenso (originalmente produzido em Burträsk, Norrbotten).
Cordeiro: para o jantar é o prato mais tradicional, acompanhado por aspargos e outros acompanhamentos.
Para beber, 'snaps' e 'brännvin' (também conhecido como aquavit), uma bebida parecida com o nosso hidromel mas com diferentes ervas. Esses são os favoritos no estilo ‘shot’. Além disso, muitas das cervejarias da Suécia tendem a lançar cervejas sazonais de Páscoa também.
Então se você tinha curiosidade em saber sobre comida típica Sueca, bom… é basicamente isso!
E onde entra a bruxaria nessa história toda?
Na Quinta-feira Santa (Skärtorsdagen), as crianças se vestem de “bruxas da Páscoa” (påskkärringar) e vão de porta em porta desejando “glad påsk” (feliz Páscoa) às pessoas em troca de doces. Pois é, o Halloween norte americano é a Páscoa Sueca.
Segundo o folclore, a história das bruxas da Páscoa se origina na primeira Quinta-feira Santa, quando Judas traiu Jesus. Acreditava-se que neste dia o mal era lançado no mundo e que as bruxas, claro, possuíam poderes malignos (e esse assunto dá tanto pano pra manga que é melhor deixar pra uma próxima newsletter).
Essas bruxas voavam em suas vassouras com um gato e uma cafeteira de cobre para a ilha mítica de ‘Blåkulla’ onde o Diabo as receberia em sua corte por três dias. Elas festejavam, dançavam e cantavam em cacofonia (junção de palavras com sons similares, como num trava-línguas). Dançar mais rápido deixava as bruxas tontas, fazendo com que fizessem ou falassem coisas ao contrário – uma “habilidade” que poderia provar que alguém é uma bruxa de verdade. Até o início dos anos 1700, os aldeões identificavam muitas mulheres Suecas como bruxas (não muito diferente do que faziam na América).
Uma maneira de se proteger dessa suposta ameaça era queimar grandes fogueiras para tentar afastá-las. Em pontos mais sombrios da história, eram um momento (ou uma “desculpa”) para queimar mulheres acusadas de bruxaria.
Hoje em dia esse dia se tornou algo mais leve e divertido para crianças. As crianças usam lenços e xales, marcam as bochechas com blush rosa e pintinhas pretas como sardas (soa familiar com uma tal festa que acontece no mês no Junho no Brasil?) e vão de porta em porta com uma vassoura e cafeteira de cobre (ou cestas) pedindo por doces e chocolates em troca de cartões feitos por elas (tradição mantida desde o início de 1800).
Aliás, uma coisa interessante de se notar aqui é que ambos meninas e meninos se fantasiam de bruxa da mesmíssima forma, com maquiagem e tudo. Um parênteses aqui sobre a grande diferença cultural de um país onde a cultura machista é praticamente inexistente (ou inexistente talvez?) nos dias atuais se compararmos ao Brasil, por exemplo. Dito isso, uma opção menos comum - mas ainda assim existente - para os meninos que não querem se vestir de bruxa é usar um terno preto, um grande bigode falso e um chapéu ou cartola. Esses são os chamados “Påskgubbar” (Anciãos da Páscoa) e eles acompanham as bruxas de porta em porta.
Agora voltando ao assunto da maquiagem das crianças… notaram como é idêntica a que usamos durante a Festa Junina no Brasil? Quando fiquei sabendo dessa tradição aqui na Suécia eu fiquei de boca aberta com essa surpresa e imediatamente comecei a pesquisar sobre essa “coincidência” e foi aí que surgiu a vontade de escrever essa newsletter.
Festa Junina e o paganismo
Lamento informar, mas a festa Junina não é Brasileira. Ela foi trazida da Europa e é originalmente uma festa pagã. Acho que depois de ler todo esse artigo deu pra conectar os pontos e chegar nessa conclusão, não é mesmo?
Então continuando nesse raciocínio, enquanto no Brasil a festa Junina acontece no inverno, na Europa o mês de Junho é marcado pela passagem da primavera para o verão (conhecido por ‘midsummer’ ou solstício de verão).
Como em toda festa pagã, estava ligada ao encerramento de ciclos, ligados a “roda da vida” (as estações do ano). Esse era o momento de ser grato pela chegada da luz, dias mais quentes e verdes encerrando o ciclo de escuridão e frio dos meses anteriores. É chegada a época de abundância, de semear e colher fertilidade. Para isso os rituais envolviam danças e fogueiras, com o intuito de afastar os maus espíritos que pudessem arruinar tudo isso.
Uma coisa que me chamou muita atenção foi a similaridade da tradição das “bruxas da Páscoa” da Suécia com as caipirinhas da festa Junina. A maquiagem é exatamente a mesma e os trajes super parecidos também. Mesmo sabendo desde que me conheço por gente que as bochechas rosas com sardas pretas são para homenagear os “fazendeiros e caipiras”, algo me diz que o buraco é mais fundo. Infelizmente não consegui encontrar nenhuma informação a respeito dessa tradição específica mas algo me diz que está diretamente relacionado às bruxas e ao paganismo Europeu como já expliquei anteriormente.
Bom, o fato é que assim que essa tradição Europeia chegou ao Brasil, perdeu-se a origem pagã e ganhou novos significados de acordo com as tradições do Cristianismo, se tornando uma data para celebrar figuras importantes do catolicismo como Santo Antônio, São João e São Pedro.
De forma geral, a festa Junina é uma festa única pois ela é uma mistura de várias tradições e crenças, do paganismo ao cristianismo, unindo a Europa à America do Sul, entre música, danças, comidas e bebidas típicas e decoração.
Então voltando ao título dessa newsletter…
A Páscoa, a primavera, as bruxas, o paganismo e a festa Junina têm sim tudo em comum: independente de uma crença, é o encerramento de um ciclo e a celebração de uma nova estação que está prestes a chegar.
Espero que tenham gostado de saber mais sobre a cultura Sueca e entender como tudo, de alguma forma, está interligado.
Vejo vocês na próxima newsletter com uma novidade… Lembra das caixas de mudança? Pois é, vamos falar sobre isso!
Até mais :)
Texto maravilhoso. Me fez pensar em muitas coisas, especialmente na construção de datas e símbolos, na construção da cultura em geral. Adorei!
Incrível. Amei as referências, comparações e essa conexão.